As palavras são como vinho, é preciso beber para sabê-las. Mas, não é tão simples, é preciso antes aprender a bebê-las, degustá-las,descobrir os seus becos, seus meandros, seus aromas secretos de palavras, saber esperar a sua hora minúscula, oculta, seus caramelos congelados que esperam a chegada da primavera para transformar-se de novo em palavras pétreas e poder significar.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

PORTO - SUL



 

  I




Queria nesses dias frios
um poema teu estendido sob a mesa
como uma flor de silêncio
calando os gritos da alma
e que me falasse de retorno
porque a saudade veio em mim
como um pássaro de agonia
devorando os meus ossos cansados.

Um poema teu que me fizesse chorar
e me incendiasse as veias
e que nele eu pudesse habitar
e sibilando as coisas lidas pelo ar
não como quem vai, mas como quem fica
nessa distância inaudita que há entre o ser e o estar
nas lembranças, me pusesse soprando as palavras ditas
e esquecesse ...


E como quem gasta naus pelo vento
Iria soltá-las a ti, ao ar, para nada,
nada que não fosse além de olhar
e ficar te esculpindo no ar
- como quem olha e não vê o que quer ver -
como te olho agora
eu, que não soube te dizer 
no momento pequeno de antes
quando ainda éramos corpos crus e almas misturadas
mas o sei agora, e não sei ao mesmo
porque não sei o que sou agora
e estou no meio do silêncio do que não é:
este poema escrito no ficar - 
e tristo ...









  II





Quis te trazer um poema místico, mítico, mágico, alegre
para que te deixasses inundar
como me inundo em ti, ao te sentir
mas sem te saber, sabendo apenas o que de ti, em mim pressinto
porque não te soube encontrar no momento de antes.

Como quem lê um poema e o esquece no ar
que no entender da sombra que nele há
dormem letras azuis de alma obscura
de algum poeta talvez ...

Como naus
que esqueceram o Porto e ficam, na distância
ao léu, ao sol, no ar, no Sul,
secando transparentes ...




 
  III





Quis te trazer um poema doce
para que me amasses, me amavisses, de longe
por essas falas abandonadas que escrevo com medo
trouxe-te essas frases tão amargas
que se desprenderam de mim
como quem perde o olhar
para achá-lo no distar
do que ainda não supõe mas sabe que há.

Porque quem olha e sabe olhar 
pelo lúmen do que está
na vivez do interior das coisas
tem-se sempre em algum lugar
ou noutro um, há de sempre estar
mesmo como eu
não aqui, mas no perscrutar da palavra
que ainda não verte para ver-te ...







Trouxe de ti, de tua falta ainda
uma outra inércia de palavras 
que não se movem mais dentro de mim
e é de ti essa lenta investigação dos gestos
esse torpor pálido que me habita na noite
e me consome a chama
e me deixa refutando os teus liames 
ao mesmo tempo que te amo.
Esse vazio me trouxe tua vinda
és sangue invisível das minhas veias
és lembrança que fica doendo na pele e nos tímpanos
veio de ti o opaco, o brilho que secou
és palavras apenas ...








( ? ) Eras amor
se te movias nos meus olhos e agora nos nervos do poema
e depois te transmudaste numa noite que se dilata muda
pelas janelas da solidão da cidade
e nada mais ?

Mas isso não sei ...

Trouxe-te este poema para estar em ti
mas as palavras se debateram inúteis em mim
e não puderam emudecer a dor onde eu te esperava
essa dor que me encontrou
no lugar deserto de agora ( onde eram os teus olhos )
rutilando a paisagem que adejava nos meus horizontes ...



 
  IV





Quanta coisa cabe nesse espaço
que frio e úmido suporta o poema silencioso
o poema invisível por onde respiro um pouco
para não morrer de todo
dessa janela de onde os meus olhos escorrem
para estarem em nada
porque nesse o tempo esqueceu-se de existir
e as sombras que vejo
por trás das cinzas do Porto, esta janela
são as águas do mar, negras e profundas
ou o rio das calçadas
ou as linhas do poema, como ondas
que sustentam as velas dos meus olhos que vão distando
e o que fica, nesse Porto manso de cansaços
não tem a impetuosidade das águas onde atirarei o poema
- nau convulsa, sêmea -
que navega para além dos olhos, nos longes
desvirginando as falas silenciosas 
que dormem sob as águas, ressurgindo-as
essas que se deitam nos muros sob o frio
por ti, a emudecerem
e se debaterem nos cantos desse infinito ...




 
  V





Quis te gritar em desatino
nessa esperança ridícula que têm os condenados
que absorve os aprisionados do mar do silêncio
os poetas vis, quis te ouvir ...
mas tua boca não exprimiu som, tua boca foi também silêncio.

Mas qual, mas quê, por quê ? ...

Fiquei como quem verte suor sobre si mesmo
duvidando de mim
sabendo-me não ser o que me queria saber
exsudando o próprio grito
que morreu antes de se fazer ouvir
e me entorpeceu o peito
e me ensurdeceu as entranhas
de tão alto, de tão grave, para nada ...



 
  VI





Quis, enfim, te mutilar em mim
para desfazer-me dessa dor inútil
dessa febre misteriosa e circular
desse arfar, doença que tem
quem ausculta a própria alma
quem envenena os poros
na dor transparente, esse cristal
de quem soergue a chama
 - de quem ama -
e pede ao Porto para mentir
por não poder-se ir
e não poder sair de si, nem suportar
como quem quer morrer ...



Mas o amor não morre dessa noite comum
o amor é um silêncio que se escuta sempre
e não se pode matar com gritos, nem com poemas
é uma fera de éter, o amor
que ruge ad infinitum nas escarpas e nos abismos de quem ama.


 
  VII





( Mas que frágil é minha alma
que a mais pálida lembrança a consome
e que inútil me tenho na incerteza de Ser ).

Nada fica no lugar de tudo ...

Nesse nada que há, então
trouxe-te para perto de mim
na inscrição desse poema
na agonia desse “Porto”
onde as palavras são como ovelhas
e eu “um guardador de rebanhos” que perdeu seu cajado
a te espreitar na lembrança entre o céu e o vale
e te ver dissipar-se, mesmo que eu não queira
no silente das frases
e o abandono do meu corpo
que ficaram deste Porto


para nada ...

Marcello - Pelotas/RS (1998)

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Quem sou eu

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Pelotas, RS, Brazil
Quem sou eu? Pois começo a pensar: como Leolo, não o sou, porque eu sonho. Parce que moi, je rêve. Je ne le suis pas. Abdico do reinado de ser para estar um rio: um poderoso rio castanho, taciturno, indômito e intratável... O aroma das uvas sobre a mesa de outono. O seu estuário onde a estrela-do-mar, o caranguejo e o espinhaço da baleia são arremessados para a pulsação da terra. Tudo tange e vibra. Fora isso, há esse tempo de agora, ex nihilo, mastigando algum pedaço de silêncio enquanto a poesia vibra. Desse mim, não há muito o que dizer, mas certamente há muito o que inventar.

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