As palavras são como vinho, é preciso beber para sabê-las. Mas, não é tão simples, é preciso antes aprender a bebê-las, degustá-las,descobrir os seus becos, seus meandros, seus aromas secretos de palavras, saber esperar a sua hora minúscula, oculta, seus caramelos congelados que esperam a chegada da primavera para transformar-se de novo em palavras pétreas e poder significar.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Fernando Pessoa - Primeiro Fausto (Primeiro Tema: Mistério do Mundo)










I

Quero fugir ao mistério 
Para onde fugirei? 
Ele é a vida e a morte 
Ó Dor, aonde me irei?


II

O mistério de tudo 
Aproxima-se tanto do meu ser, 
Chega aos olhos meus d'alma tão [de] perto, 
Que me dissolvo em trevas e universo... 
Em trevas me apavoro escuramente.

III

O perene mistério, que atravessa 
Como um suspiro céus e corações...

IV

O mistério ruiu sobre a minha alma 
E soterrou-a... Morro consciente!

V

Acorda, eis o mistério ao pé de ti! 
E assim pensando riu amargamente, 
Dentro em mim riu como se chorasse!

VI

Ah, tudo é símbolo e analogia! 
O vento que passa, a noite que esfria, 
São outra coisa que a noite e o vento — 
Sombras de vida e de pensamento. 

Tudo o que vemos é outra coisa. 
A maré vasta, a maré ansiosa, 
É o eco de outra maré que está 
Onde é real o mundo que há. 

Tudo o que temos é esquecimento. 
A noite fria, o passar do vento, 
São sombras de mãos, cujos gestos são 
A ilusão madre desta ilusão.

VII

Mundo, confranges-me por existir. 
Tenho-te horror porque te sinto ser 
E compreendo que te sinto ser 
Até às fezes da compreensão. 

Bebi a taça [...] do pensamento 
Até ao fim; reconhecia pois 
Vazia, e achei horror. 

Mas eu bebi-a. 
Raciocinei até achar verdade, 
Achei-a e não a entendo. Já se esvai 
Neste desejo de compreensão, 
Inalteravelmente, 

Neste lidar com seres e absolutos, 
O que em mim, por sentir, me liga à vida 
E pelo pensamento me faz homem. 

E neste orgulho certo 
Fechado mais ainda e alheado 
Me vou, do limitado e relativo 
Mundo em que arrasto a cruz do meu pensar.

VIII

Cidades, com seus comércios... 

Tudo é permanentemente estranho, mesmamente 
Descomunal, no pensamento fundo; 
Tudo é mistério, tudo é transcendente 
Na sua complexidade enorme: 
Um raciocínio visionado e exterior, 
Uma ordeira misteriosidade — 
Silêncio interior cheio de som.

IX

Já estão em mim exaustas, 
Deixando-me transido de terror, 
Todas as formas de pensar [...] 
O enigma do universo. Já cheguei 
A conceber, como requinte extremo 
Da exausta inteligência, que era Deus... 

Já cheguei a aceitar como verdade 
O que nos dão por ela, e a admitir 
Uma realidade não real 
Mas não sonhada, [como o] Deus Cristão. 

Falhados pensamentos e sistemas 
Que, por falharem, só mais negro fazem 
O poder horroroso que os transcende 
A todos, [sim,] a todos. 
Oh horror! Oh mistério! Oh existência!

X

O segredo da Busca é que não se acha. 
Eternos mundos infinitamente, 
Uns dentro de outros, sem cessar decorrem 
Inúteis; Sóis, Deuses, Deus dos Deuses 

Neles intercalados e perdidos 
Nem a nós encontramos no infinito. 
Tudo é sempre diverso, e sempre adiante 
De [Deus] e Deuses: essa, a luz incerta 
Da suprema verdade. 

XI

Nos vastos céus estrelados 
Que estão além da razão, 
Sob a regência de fados 
Que ninguém sabe o que são, 
Ha sistemas infinitos, 
Sóis centros de mundos seus, 

E cada sol é um Deus. 
Eternamente excluídos 
Uns dos outros, cada um 
É universo.

XII

Num atordoamento e confusão 
Arde-me a alma, sinto nos meus olhos 
Um fogo estranho, de compreensão 
E incompreensão urdido, enorme 
Agonia e anseio de existência, 
Horror e dor, [agonia] sem fim!

XIII

Fantasmas sem lugar, que a minha mente 
Figura no visível, sombras minhas 
Do diálogo comigo.

XIV

Não, não vos disse ... A essência inatingível 
Da profusão das coisas, a substância, 
Furta-se até a si mesma. Se entendesses 
Neste ou naquele modo o que vos disse, 
Não o entendesses, que lhe falta o modo 
Por que se entenda.

XV

Do eterno erro na eterna viagem, 
O mais que [exprime] na alma que ousa, 
É sempre nome, sempre linguagem, 
O véu e capa de uma outra cousa. 

Nem que conheças de frente o Deus, 
Nem que o Eterno te dê a mão, 
Vês a verdade, rompes os véus, 
Tens mais caminho que a solidão. 

Todos os astros, inda os que brilham 
No céu sem fundo do mundo interno, 
São só caminhos que falsos trilham 
Eternos passos do erro eterno. 

Volta a meu seio, que não conhece 
os deuses, porque os não vê, 
Volta a meus braços, melhor esquece 
que tudo só fingir que é.

XVI

Ondas de aspiração [...] 
Sem mesmo o coração e alma atingir 
Do vosso sentimento; ondas de pranto, 
Não vos posso chorar, e em mim subis, 

Maré imensa, numerosa e surda, 
Para morrer da praia no limite 
Que a vida impõe ao Ser; ondas saudosas 
De algum mar alto aonde a praia seja 

Um sonho inútil, ou de alguma terra 
Desconhecida mais que o eterno [amor] 
De eterno sofrimento, e aonde formas 
Dos olhos de alma não imaginadas 

Vogam essências [...] 
Esquecidas daquilo que chamamos 
Suspiros, lágrimas, desolação; 
[Ondas] nas quais não posso visionar 

Nem dentro em mim, em sonho, [barco] ou ilha, 
Nem esperança transitória, nem 
Ilusão nada da desilusão; 
Oh, ondas sem brancuras nem asperezas, 

Mas redondas, como óleos, e silentes 
No vosso intérmino e total rumor — 
Oh, ondas das almas, decaí em lago 
Ou levantai-vos ásperas e brancas 
Com o sussurro ácido da esperança ... 
Erguei em tempestades a minha alma! 

Não haverá, Além da morte e da imortalidade, 
Qualquer coisa maior? Ah, deve haver 
Além da vida e morte, ser, não ser, 
Um inominável supertranscendente, 
Eterno incógnito e incognoscível! 
Deus? Nojo. Céu, inferno? Nojo, nojo. 
Pr'a que pensar, se há de parar aqui 
O curto vôo do entendimento? 
Mais além! Pensamento, mais além!

XVII

Paro à beira de mim e me debruço... 
Abismo... E nesse abismo o Universo. 
Com seu tempo e seu 'spaço, é um astro, e nesse 
Alguns há, outros universos, outras 
Formas do Ser com outros tempos, 'spaços 
E outras vidas diversas desta vida... 
O espírito é outra estrela. . . O Deus pensável 
É um sol... E há mais Deuses, mais espíritos 
De outras essências de Realidade ... 
E eu precipito-me no abismo, e fico 
Em mim... E nunca desço ... E fecho os olhos 
E sonho — e acordo para a Natureza 
Assim eu volto a mim e à Vida 

Deus a si próprio não se compreende. 
Sua origem é mais divina que ele, 
E ele não tem a origem que as palavras 
Pensam fazer pensar... 

O absatrato Ser [em sua] abstrata idéia 
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna. 
Eu e o Mistério — face a face...

XVIII

No meu abismo medonho 
Se despenha mudamente 
A catarata de sonho 
Do mundo eterno e presente. 
Formas e idéias eu bebo, 
E o mistério e horror do mundo 
Silentemente recebo 
No meu abismo profundo. 

O Ser em si nem é o nome 
Do meu ser inenarrável; 
No meu mudo Maëlstrom 
O grande mundo inestável 
Como um suspiro se apaga 
E um silêncio mais que infindo 
Acolhe o acorrer do vago 
Que em mim se vai esvaindo. 

Por mais que o Ser, que transcende 
Criatura e Criador, 
Se esse Ser ninguém entende 
Ele, a mim e ao meu horror, 
Menos. Vida, pensamento, 
Tudo o que nem se adivinha, 
É tudo como um momento 
Numa eternidade minha.

XIX

Abre-me o sonho 
Para a loucura a tenebrosa porta, 
Que a treva é menos negra que esta luz. 

O terror desvaria-me, o terror 
De me sentir viver e ter o mundo 
Sonhado a laços de compreensão 
Na minha alma gelada.

XX

A qualquer modo todo escuridão 
Eu sou supremo. Sou o Cristo negro. 
O que não crê, nem ama — o que só sabe 
O mistério tornado carne. 
Há um orgulho atro que me diz 
Que Sou Deus inconscienciando-me 
Para humano; sou mais real que o mundo, 
Por isso odeio-lhe a existência enorme, 
O seu amontoar de coisas vistas. 
Como um santo devoto 
Odeio o mundo, porque o que eu sou 
E que não sei sentir que sou, conhece-o 
Por não real e não ali. 
Por isso odeio-o — 
Seja eu o destruidor! Seja eu Deus ira!

XXI

Sou a Consciência em ódio ao inconsciente, 
Sou um símbolo incarnado em dor e ódio, 
Pedaço de alma de possível Deus 
Arremessado para o mundo 
Com a saudade pávida da pátria... 

Ó sistema mentido do universo, 
Estrelas nadas, sóis irreais, 
Oh, com que ódio carnal e estonteante 
Meu ser de desterrado vos odeia! 
Eu sou o inferno. Sou o Cristo negro, 
Pregado na cruz ígnea de mim mesmo. 
Sou o saber que ignora, 
Sou a insônia da dor e do pensar

XXII

Ah, não poder tirar de mim os olhos, 
Os olhos da minha alma [...] 
(Disso a que alma eu chamo) 
Só sei de duas coisas, nelas absorto 
Profundamente: eu e o universo, 
O universo e o mistério e eu sentindo 
O universo e o mistério, apagados 
Humanidade, vida, amor, riqueza. 

Oh vulgar, oh feliz! Quem sonha mais, 
Eu ou tu? Tu que vives inconsciente, 
Ignorando este horror que é existir, 
Ser, perante o [profundo] pensamento 
Que o não resolve em compreensão, tu 
Ou eu, que analisando e discorrendo 
E penetrando [...] nas essências, 
Cada vez sinto mais desordenado 
Meu pensamento louco e sucumbido. 
Cada vez sinto mais como se eu, 
Sonhando menos, consciência alerta 
Fosse apenas sonhando mais profundo

XXIII

Ah, que diversidade, 
E tudo sendo. O mistério do mundo, 
O íntimo, horroroso, desolado, 
Verdadeiro mistério da existência, 
Consiste em haver esse mistério.

XXIV

Essa simplicidade d'alma 
Possuída não só dos inocentes 
Mas até dos viciosos, criminosos... 
essa simplicidade 
Perdi-a, e só me resta um vácuo imenso 
Que o pensamento friamente ocupa.

XXV

Tremo de medo: 
Eis o segredo aberto. 
Além de ti 
Nada há, decerto, 
Nem pode haver 
Além de ti, 
Que [só] tens essência 
Nem tens existência 
E te chamas [...] Ser.

XXVI

Mais que a existência 
É um mistério o existir, o ser, o haver 
Um ser, uma existência, um existir — 
Um qualquer, que não este, por ser este — 
Este é o problema que perturba mais. 
O que é existir — não nós ou o mundo 
Mas existir em si?

XXVII

Não é a dor de já não poder crer 
Que m'oprime, nem a de não saber, 
Mas apenas [e mais] completamente o horror 
De ter visto o mistério frente a frente, 
De tê-lo visto e compreendido em toda 
A sua infinidade de mistério. 
É isto que me alheia, que me [traz] 
Sempre mostrado em mim como um terror 
E maior terror há-o?

XXVIII

Para mim ser é admirar-me 
de estar sendo.

XXIX

Há entre mim e o real um véu 
A própria concepção impenetrável. 
Não me concebo amando, combatendo, 
Vivendo com os outros. Há, em mim, 
Uma impossibilidade de existir 
De que [abdiquei], vivendo.

XXX

Tornei minha alma exterior a mim.

XXXI

Tarde! Não poder 
Adivinhar o teu segredo 
E o teu mistério ilúcido. Ignorar 
Esta emoção, 
Vaga desesperança quase amarga, 
Da sensação que dás.

XXXII

Qu'importa? Tudo é o mesmo. A mim quer seja 
Manhã inda d'orvalho arrepiada, 
Dia, ligeiro ao sol, pesado em nuvens, 
A tarde, 
A noite misteriosa, 
Tudo, se nele penso, só me amarga 
E me angustia.

XXXIII

Acordado, abro os olhos. 
Vivo! Sou vivo ainda! Torno a ver-te, 
Pálida luz, silente luz da tarde, 
Que ora me [enches] de um cálido horror! 
Onde estou? Onde estive? Ferve em mim, 
Numa quietação indefinida, 
Um eco de tumultos e de sombras 
E uma coorte como de fantasmas 
[Gritantes]. E luzes, cantos, gritos, 
Desejos, lágrimas, chamas e corpos, 
Num referver [tumultuoso] e misturado, 
Numa esvaída confusão noturna — 
Como tendo piedade de deixar-me — 
Sinto passar em mim, como visões. 
Nem com esforço recordar-me posso 
Se são fantasmas ou vagas lembranças; 
Não me lembro de vida alguma minha 
E o necessário esforço, desejado 
P'ra recordar-me, não o posso ter. 

Acabar. Nem desejo nem espero 
Nem temo, n'apatia do meu ser. 
Para que pois viver? Quero a morte, 
E ao sentir os seus passos 
Alegremente e apagadamente 
Me voltarei lento para o seu lado, 
Deixando enfim cair sobre o meu braço 
Minha cabeça, olhos cerrados, quentes 
Do choro vago já meio esquecido. 
Mas onde estou? Que casa é esta? Quarto 
Rude, simples — não sei, não tenho força 
Para observar — quarto cheio da luz 
Escura e demorada, que na tarde 
Outrora eu... Mas que importa? A luz é tudo. 
Eu conheço-a.

XXXIV

Basta ser breve e transitória a vida 
Para ser sonho. A mim, como a quem sonha, 
E escuramente pesa a certa mágoa 
De ter que despertar — a mim, a morte, 
Mais como o horror de me tirar o sonho 
E dar-me a realidade, me apavora, 
Que como morte. Quantas vezes [quantas], 
Em sonhos vazios conscientemente 
Imerso, me não pesa o ter que ver 
A realidade e o dia! 
Sim, este mundo com seu céu e terra, 
Com seus mares e rios e montanhas, 
Com suas árvores, aves, bichos, homens, 
Com o que o homem, com translata arte, 
De qualquer construção divina, fez 
— Casas, cidades, coisas, modas [...] —, 
Este mundo, que [nunca] reconheço, 
Por sonho amo, e por ser sonho o [quero] 
Ou [tenho] que deixá-lo e ver verdade, 
— Me toma a gorja, com horror de negro, 
O pensamento da hora inevitável, 
E a verdade da morte me confrange. 
Pudesse eu, sim, pudesse, eternamente 
Alheio ao verdadeiro ser do mundo, 
Viver sempre este sonho que é a vida! 
Expulso embora da divina essência, 
Ficção fingindo, vã mentira eterna, 
Alma-sonho, que eu nunca despertasse! 
Suave me é o sonho, e a vida [...] é sonho. 
Temo a verdade e a verdadeira vida. 
Quantas vezes, pesada a vida, busco 
No seio maternal da noite e do erro, 
O alívio de sonhar, dormindo; e o sonho 
Uma perfeita vida me parece 
[...] ..., e porventura 
Porque depressa passa. E assim é a vida.

XXXV

E o sentimento de que a vida passa 
E o senti-la passar 
Toma em mim tal intensidade, 
De desolado e confrangido horror, 
Que a esse próprio horror, horror eu tenho 
Por ele e por senti-lo, 
E por senti-lo como tal.

XXXVI

Aborreço-me da possibilidade 
De vida eterna; o tédio 
De viver sempre deve ser imenso. 
Talvez o infinito seja isso... 
Já o tédio de o pensar é horroroso.

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Quem sou eu? Pois começo a pensar: como Leolo, não o sou, porque eu sonho. Parce que moi, je rêve. Je ne le suis pas. Abdico do reinado de ser para estar um rio: um poderoso rio castanho, taciturno, indômito e intratável... O aroma das uvas sobre a mesa de outono. O seu estuário onde a estrela-do-mar, o caranguejo e o espinhaço da baleia são arremessados para a pulsação da terra. Tudo tange e vibra. Fora isso, há esse tempo de agora, ex nihilo, mastigando algum pedaço de silêncio enquanto a poesia vibra. Desse mim, não há muito o que dizer, mas certamente há muito o que inventar.

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