As palavras são como vinho, é preciso beber para sabê-las. Mas, não é tão simples, é preciso antes aprender a bebê-las, degustá-las,descobrir os seus becos, seus meandros, seus aromas secretos de palavras, saber esperar a sua hora minúscula, oculta, seus caramelos congelados que esperam a chegada da primavera para transformar-se de novo em palavras pétreas e poder significar.

sexta-feira, 26 de junho de 2009


"Em Lagos em Agosto o sol cai a direito e há sítios onde até o chão é
caiado. O sol é pesado e a luz leve. Caminho no passeio rente ao muro mas
não caibo na sombra. A sombra é uma fita estreita. Mergulho a mão na sombra
como se a mergulhasse na água.
A loja dos barros fica numa pequena rua do outro lado da praça. Fica depois
da taberna fresca e da oficina do ferreiro.
Entro na loja dos barros. A mulher que os vende é pequena e velha, vestida
de preto. Está em frente de mim rodeada de ânforas. À direita e à esquerda o
chão e as prateleiras estão cobertos de louças alinhadas, empilhadas e
amontoadas: pratos, bilhas, tigelas, ânforas. Há duas espécies de barro:
barro cor-de-rosa pálido e barro vermelho-escuro. Barro que desde tempos
imemoriais os homens aprenderam a modelar numa medida humana. Formas que
através dos séculos vêm de mão em mão. A loja onde estou é como uma loja de
Creta. Olho as ânforas de barro pálido poisadas em minha frente no chão.
Talvez a arte deste tempo em que vivo me tenha ensinado a olhá-las melhor.
Talvez a arte deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para
limpar o olhar.
A beleza da ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode
ser descrita. Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza
não existe em si mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade da
qual ela não pode ser separada. Não falo de uma beleza estética mas sim de
uma beleza poética.
Olho para a ânfora: quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já
agora ela me dá de beber. Paz e alegria, deslumbramento de estar no mundo,
religação.
Olho para a ânfora na pequena loja dos barros. Aqui paira uma doce penumbra.
Lá fora está o sol. A ânfora estabelece uma aliança entre mim e o sol.
Olho para a ânfora igual a todas as outras ânforas, a ânfora inumeravelmente
repetida mas que nenhuma repetição pode aviltar porque nela existe um
princípio incorruptível.
Porém, lá fora na rua, sob o peso do mesmo sol, outras coisas me são
oferecidas. Coisas diferentes. Não têm nada de comum nem comigo nem com o
sol. Vêm de um mundo onde a aliança foi quebrada. Mundo que não está
religado nem ao sol nem à lua, nem a Ísis, nem a Deméter, nem aos astros,
nem ao eterno. Mundo que pode ser habitat mas não é um reino.
O reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a
aliança que cada um tece.
Este é o reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da
noite, na pureza da cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão.
Semelhante ao corpo de Orfeu dilacerado pelas fúrias este reino está
dividido. Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa
em coisa.
É por isso que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa.
Ponho-a sobre o muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha
aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro,
reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade."

Sophia de Mello Breyner Andresen

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Quem sou eu

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Pelotas, RS, Brazil
Quem sou eu? Pois começo a pensar: como Leolo, não o sou, porque eu sonho. Parce que moi, je rêve. Je ne le suis pas. Abdico do reinado de ser para estar um rio: um poderoso rio castanho, taciturno, indômito e intratável... O aroma das uvas sobre a mesa de outono. O seu estuário onde a estrela-do-mar, o caranguejo e o espinhaço da baleia são arremessados para a pulsação da terra. Tudo tange e vibra. Fora isso, há esse tempo de agora, ex nihilo, mastigando algum pedaço de silêncio enquanto a poesia vibra. Desse mim, não há muito o que dizer, mas certamente há muito o que inventar.

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