As palavras são como vinho, é preciso beber para sabê-las. Mas, não é tão simples, é preciso antes aprender a bebê-las, degustá-las,descobrir os seus becos, seus meandros, seus aromas secretos de palavras, saber esperar a sua hora minúscula, oculta, seus caramelos congelados que esperam a chegada da primavera para transformar-se de novo em palavras pétreas e poder significar.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Corazón coraza





Porque te tengo y no 
porque te pienso 
porque la noche está de ojos abiertos 
porque la noche pasa y digo amor 
porque has venido a recoger tu imagen 
y eres mejor que todas tus imágenes 
porque eres linda desde el pie hasta el alma 
porque eres buena desde el alma a mí 
porque te escondes dulce en el orgullo 
pequeña y dulce 
corazón coraza 

porque eres mía 
porque no eres mía 
porque te miro y muero 
y peor que muero 
si no te miro amor 
si no te miro 

porque tú siempre existes dondequiera 
pero existes mejor donde te quiero 
porque tu boca es sangre 
y tienes frío 
tengo que amarte amor 
tengo que amarte 
aunque esta herida duela como dos 
aunque te busque y no te encuentre 
y aunque 
la noche pase y yo te tenga 
y no.


Mario Benedetti

terça-feira, 21 de julho de 2009

A melhor cantora feia do mundo


Qua, 15/04/09
por Paulo Nogueira |
| tags Britain’s Got Talent, I Dreamed a Dream, Susan Boyle

Calma. Não desista de ler este texto, e muito menos de ver o vídeo, por causa da feiúra desleixada e grisalha da mulher que está segurando o microfone. Dê uma chance a Susan Boyle. Ela levantou uma platéia que a recebera com risos cínicos no programa de televisão Britain’s Got Talent, da ITV, depois de cantar “I Dreamed a Dream”, do musical Les Miserables. Cantores, dançarinos, comediantes - todo tipo de artista, enfim - competem por um prêmio de 100 000 libras, cerca de 330 000 reais. Basicamente, os concorrentes são eliminados até que sobre um. Terminada a apresentação, os três jurados dizem simplesmente sim ou não. Se prevalecer o sim, o candidato continua. Se não, adeus. Fora o dinheiro e a celebridade, o vencedor leva ainda o bônus de participar de um espetáculo em cuja platéia está a família real. Vale a pena passear pelo site do programa. Um primor. Você vai se divertir.


É a terceira temporada de Britain’s Got Talent, um dos maiores sucessos de audiência do Reino Unido. Susan ainda não levou nada. Simplesmente passou de fase. Mas virou uma sensação. O vídeo em que ela aparece virou um fenômeno na internet. Ela estourou não apenas no Reino Unido. Em sua página no Twitter, o ator americano Ashton Kutcher colocou um link do vídeo. “Ela fez minha noite”, escreveu ele. A mulher de Kutcher - a ex-gostosa Demi Moore - respondeu que Susan a levara às lágrimas. Tão logo Susan começa a cantar, a platéia e os jurados se deslumbram. “Sem dúvida, foi a maior surpresa que tive em três anos de programa”, disse um dos jurados. “Foi o maior sim que já dei a qualquer candidato.”

Suspeito que a feiúra tosca de Susan - em oposição à beleza suave de sua voz - tenha contribuído para o encantamento. Mas não estou seguro.

Susan tem 48 anos. É escocesa. Está desempregada. Mas a fortuna bateu à sua porta: dinheiro não será mais um problema para ela, provavelmente. Ela disse, no palco, que nunca foi beijada.

Não chega a ser uma surpresa.

I dreamed a dream




I dreamed a dream in time gone by
When hopes were high and life worth living,
I dreamed that love would never die
I dreamed that God would be forgiving

Then I was young and unafraid,
When dreams were made and used and wasted
There was no ransom to be payed,
No song unsung, no wine untasted

But the tigers come at night,
With their voices soft as thunder,
As they tear your hope apart
As they turn your dreams to shame

And still I dreamed he'd come to me
And we would live the years together,
But there are dreams that cannot be
And there are storms we cannot weather

I had a dream my life would be
So different from this hell I'm living
So different now from what it seemed

Now life has killed the dream I dreamed

Susan Boyle

Eu Sonhei Um Sonho

Eu sonhei um sonho num tempo que já se foi
Quando esperanças eram elevadas e valia a pena viver
Eu sonhei que o amor nunca morreria
Eu sonhei que Deus estaria perdoando

Então eu era jovem e destemida
Quando sonhos eram feitos e usados e desperdiçados
Não havia nenhum resgate a ser pago
Nenhuma canção não cantada, nenhum vinho intocado

Mas os tigres vêm à noite
Com suas vozes suaves como trovão
Como eles despedaçam sua esperança
Transformando seus sonhos em vergonha

E ainda sim sonhei que ele veio até mim
E que viveríamos os anos juntos
Mas há sonhos que não podem ser
E há tempestades que não podemos prever

Eu tive um sonho que minha vida seria
Tão diferente deste inferno que estou vivendo
Tão diferente daquilo que parecia
Agora a vida matou o sonho que sonhei

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Le Petit Prince






E foi então que apareceu a raposa:
- Bom dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu polidamente o principezinho, que se voltou, mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu? Perguntou o principezinho. Tu és bem bonita...
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Vem brincar comigo, propôs o principezinho. Estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda.
- Ah! Desculpa, disse o principezinho.
- Após uma reflexão, acrescentou:
- Que quer dizer “cativar”?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
...Mas a raposa voltou a sua idéia.
- Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando tiveres me cativado. O trigo, que é dourado fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...
E a raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
- Por favor... cativa-me! Disse ela.
- Bem quisera, disse o principezinho, mas não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!
- Que é preciso fazer? Perguntou o principezinho.
- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mau-entendidos. Mas, a cada dia, te sentarás mais perto...
No dia seguinte o principezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração...É preciso ritos...
... Assim o principezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:
- Ah! Eu vou chorar.
- A culpa é tua, disse o principezinho, eu não queria te fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...
- Quis, disse a raposa.
- Mas tu vais chorar! Disse o principezinho.
- Vou, disse a raposa.
- Então, não sais lucrando nada!
- Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo.
Depois ela acrescentou:
- Vai rever as rosas. Tu compreenderás que a tua é única no mundo. Tu voltarás para me dizer adeus, e eu te farei presente de um segredo.
Foi o principezinho rever as rosas:
- Vós não sois absolutamente iguais a minha rosa, vós não sois nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativaste a ninguém. Sois como era minha raposa. Era uma igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Agora ela é única no mundo.
E as rosas estavam desapontadas.
- Sois belas, mas vazias, disse ele ainda. Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é porém mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob uma redoma. Foi a ela que eu abriguei com o paravento. Foi dela que eu matei as larvas ( exceto duas ou três borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa.
E voltou, então, à raposa:
- Adeus, disse ele...
- Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
-Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que fez tua rosa tão importante.
-Foi o tempo que perdi com a minha rosa... repetiu o principezinho a fim de se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não deve esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa...
- eu sou responsável pela minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.

Antoine de Saint Èxupéry

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Matines


Quand les chants de la terre au matin retentirent,
dans le ciel déjà clair, le tapis de rosée
s'élevait comme la brume des naseaux souffletée
par les boeufs au labeur dont la force s'expire.

Le clocher se répand sur la campagne, attire
les dévôts les braves gens, à matines prier,
peu à peu s'éveille tout, le village s'étire,
à la perspective ardue, d'une longue journée.

O mito de Lilith e a opressão feminina





















O primeiro capítulo da Bíblia, conta a história de Adão e Eva... Mas segundo o Zohar (comentário rabínico dos textos sagrados), Eva não é a primeira mulher de Adão. Quando Deus criou o Adão, ele fê-lo macho e fêmea, depois cortou-o ao meio, chamou a esta nova metade Lilith e deu-a em casamento a Adão. Mas Lilith recusou, não queria ser oferecida a ele, tornar-se desigual, inferior, e fugiu para ir ter com o Diabo. Deus tomou uma costela de Adão e criou Eva, mulher submissa, dócil, inferior perante o homem.

De acordo com Hermínio, "Lilith foi feita por Deus, de barro, à noite, criada tão bonita e interessante que logo arranjou problemas com Adão". Esse ponto teria sido retirado da Bíblia pela Inquisição. O astrólogo assinala que ali começou a eterna divergência entre o masculino e o feminino, pois Lilith não se conformou com a submissão ao homem.

O mito de Lilith pertence à grande tradição dos testemunhos orais que estão reunidos nos textos da sabedoria rabínica definida na versão Jeovística, que se coloca lado a lado, precedendo-a de alguns séculos, da versão bíblica dos sacerdotes. Sabemos que tais versões do Gênesis - e particularmente o mito do nascimento da mulher - são ricas de contradições e enigmas que se anulam. Nós deduzimos que a lenda de Lilith, primeira companheira de Adão, foi perdida ou removida durante a época de transposição da versão Jeovística para aquela sacerdotal, que logo após sofre as modificações dos pais da igreja.

No Talmude, ela é descrita como a primeira mulher de Adão. Ela brigou com Adão, reivindicando igualdade em relação a seu marido, deixando-o "fervendo de cólera". Lilith queria liberdade de agir, de escolher e decidir queria os mesmos direitos do homem, mas quando constatou que não poderia obter status igual, se rebelou e, decidida a não submeter-se a Adão e, a odiá-lo como igual, resolveu abandoná-lo. Segundo as versões aramaica e hebraica do Alfabeto de Ben Sirá (século 6 ou 7). Todas as vezes que eles faziam sexo, Lilith mostrava-se inconformada em ter de ficar por baixo de Adão, suportando o peso de seu corpo. E indagava: "Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo? Por que ser dominada por ti? Contudo, eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual." Mas Adão se recusava a inverter as posições, consciente de que existia uma "ordem" que não podia ser transgredida. Lilith deve submeter-se a ele, pois esta é a condição do equilíbrio preestabelecido. Vendo que o companheiro não atendia seus apelos, que não lhe daria a condição de igualdade, Lilith se revolta, pronuncia nervosamente o nome de Deus, faz acusações a Adão e vai embora; é o momento em que o Sol se despede e a noite começa a descer o seu manto de escuridão soturna, tal como na ocasião em que Jeová-Deus fez vir ao mundo os demônios. 

Adão sente a dor do abandono; entorpecido por um sono profundo, amedrontado pelas trevas da noite, ele sente o fim de todas as coisas boas. Desperto, Adão procura por Lilith e não a encontra: “Procurei-a em meu leito, à noite, aquele que é o amor de minha alma; procurei e não a encontrei” (Cântico dos Cânticos III, 1). Lilith partiu rumo ao mar vermelho (Diz-se que quando Adão insistiu em ficar por cima durante as relações, Lilith usou seus conhecimentos mágicos para voar até o Mar Vermelho). Lá onde habitam os demônios e espíritos malignos, segundo a tradição hebraica. É um lugar maldito, o que prova que Lilith se afirmou como um demônio, e é o seu caráter demoníaco que leva a mulher a contrariar o homem e o questionar em seu poder. Desde então, Lilith tornou-se a noiva de Samael, o senhor das forças do mal do Outro Lado . Como conseqüência, deu à luz toda uma descendência demoníaca, conhecida como "Liliotes ou Linilins", na prodigiosa proporção de cem por dia. Alguns escritos contam que Adão queixou-se a Deus sobre a fuga de Lilith e, para compensar a tristeza de Adão, Deus resolveu criar Eva, moldada exatamente como as exigências da sociedade patriarcal. A mulher feita a partir de um fragmento de Adão. É o modelo feminino permitido ao ser humano pelo padrão ético judaico-cristão. A mulher submissa e voltada ao lar. Assim, enquanto Lilith é força destrutiva (o Talmude diz que ela foi criada com imundície e lodo), Eva é construtiva e Mãe de toda Humanidade (ela foi criada da carne e do sangue de Adão).
  Jehová-Deus tenta salvar a situação, primeiro ordenando-lhe que retorne e, depois, enviou ao seu encalço uma guarnição de três anjos, Sanvi, Sansavi e Samangelaf, para tentar convencê-la; porém, uma vez mais e com grande fúria, ela se recusou a voltar. Lilith está irredutível e transformada. Ela desafiou o homem, profanou o nome do Pai e foi ter com as criaturas das trevas. Como poderia voltar ao seu esposo? Os anjos ainda ameaçaram: "Se desobedeces e não voltas, será a morte para ti." Lilith , entretanto, em sua sapiência demoníaca, sabe que seu destino foi estabelecido pelo próprio Jeová-Deus. Ela está identificada com o lado demoníaco e não é mais a mulher de Adão. Acasalando-se com os diabos, Lilith traz ao mundo cem demônios por dia, os Lilim, que são citados inclusive na versão sacerdotal da Bíblia. Jeová-Deus, por seu lado, inicia uma incontrolável matança dessas criaturas, que, por vingança, são enfurecidas pela sua genitora. Está declarada a guerra ao Pai. Os homens, as crianças, os inválidos e os recém-casados, são as principais vítimas da vingança de Lilith. Ela cumpre a sua maligna sorte e não descansará assim tão cedo.

Uma outra versão, diz que foram os anjos que mataram os filhos que tivera com Adão. Tão rude golpe transformou-a, e ela tentou matar os filhos de Adão com sua segunda esposa, Eva. 

Lilith Alegou ter poderes vampíricos sobre bebês, mas como os anjos a queriam impedir, fizeram-na prometer que, onde quer que visse seus nomes, ela não faria nenhum mal aos humanos. Então, como não podia vencê-los, ela fez um trato com eles: concordou em ficar afastada de quaisquer bebês protegidos por um amuleto que tivesse o nome dos três anjos. Não obstante, esse ódio contra Adão e contra sua nova (e segunda) mulher, Eva, resultou, para Lilith, no desabafo da sua fúria sobre os filhos deles e de todas as gerações subseqüentes.
  A partir daí, Lilith assume plenamente sua natureza de demônio feminino, voltando-se contra todos os homens, de acordo com o folclore assírio, babilônico e hebraico. E são inúmeras as descrições que falam do pavor de suas investidas. Conta-se, por exemplo, que Lilith surpreendia os homens durante o sono e os envolvia com toda sua fúria sexual, aprisionando-os em sua lasciva demoníaca, causando-lhes orgasmos demolidores. Ela montava-lhes sobre o peito e, sufocando-os (pois se vingava por ter sido obrigada a ficar "por baixo" na relação com Adão), conduzia a penetração abrasante. Aqueles que resistiam e não morriam ficavam exangues e acabavam adoecendo. Por isso Lilith também está identificada com o tradicional vampiro. Seu destino era seduzir os homens, estrangular crianças e espalhar a morte.

Durante os primeiros séculos da era cristã, o mito de Lilith ficou bem estabelecido na comunidade judaica. Lilith aparece no Zohar, o livro do Esplendor, uma obra cabalística do século 13 que constitui o mais influente texto hassídico e no Talmude, o livro dos hebreus. No Zohar, Lilith era descrita como succubus, com emissões noturnas citadas como um sinal visível de sua presença. Os espíritos malignos que empesteavam a humanidade eram, acreditava-se, o produto de tais uniões. No Zohar Hadasch (seção Utro, pág. 20), está escrito que Samael - o tentador - junto com sua mulher Lilith, tramou a sedução do primeiro casal humano. Não foi grande o trabalho que Lilith teve para corromper a virtude de Adão, por ela maculada com seu beijo; o belo arcanjo Samael fez o mesmo para desonrar Eva: E essa foi a causa da mortalidade humana. O Talmude menciona que "Quando a serpente envolveu-se com Eva, atirou-lhe a mácula cuja infecção foi transmitida a todos os seus descendentes... (Shabbath, fol. 146, recto)". Em outras partes, o demônio masculino leva o nome de Leviatã, e o feminino chama-se Heva. Essa Heva, ou Eva, teria representado o papel da esposa de Adão no éden durante muito tempo, antes que o Senhor retirasse do flanco de Adão a verdadeira Eva (primitivamente chamada de Aixha, depois de Hecah ou Chavah). Das relações entre Adão e a Heva-serpente, teriam nascido legiões de larvas, de súcubos e de espíritos semiconscientes (elementares). Os rabinos fazem de Leviatã uma espécie de ser andrógino infernal, cuja a encarnação macho (Samael) é a "serpente insinuante" e a encarnação fêmea (Lilith), é a "cobra tortuosa" . Segundo o Sepher Emmeck-Ameleh, esses dois seres serão aniquilados no fim dos tempos: "Nos tempos que virão o Altíssimo (bendito seja!) decapitará o ímpio Samael, pois está escrito (Is. XVII, 1): 'Nesse tempo Jeová com sua espada terrível visitará Leviatã, a serpente insinuante que é Samael e Leviatã, a cobra tortuosa que é Lilith' (fol. 130, col. 1, cap.XI). Também segundo os rabinos, Lilith não é a única esposa de Samael; dão o nome de três outras: Aggarath, Nahemah e Mochlath. Mas das quatro demônias, só Lilith dividirá com o esposo a terrível punição, por tê-lo ajudado a seduzir Adão e Eva. Aggarath e Mochlath tem apenas um papel apagado, ao contrário do que acontece com as outras duas irmãs, Nahemah e Lilith.

A natureza foi madrasta para a mulher 

  (Sigmund Freud)

Na Pré-história a mulher possuía o “poder biológico” e o homem o “poder cultural”. Daí o homem inveja esse poder biológico que a mulher tinha de gerar em seu ventre a vida.  

No princípio era a Mãe Deusa da Terra, nos mitos antigos o mundo era criado por uma Deusa mãe sem auxílio de ninguém. Na segunda etapa, ele é criado por um casal criador. No terceiro, um macho ou toma o poder da Deusa ou o cria sobre o corpo da Deusa primordial. Na quarta etapa um Deus macho cria o mundo sozinho.Mais no decorrer do neolítico o homem começa a dominar a sua função biológica reprodutora, e, podendo controlá-la, pode controlar a sexualidade feminina. Aparece então o casamento como o que conhecemos hoje, em que a mulher é PROPRIEDADE do homem e essa herança se transmite através das gerações de descendência masculina. Para poder arar a terra, os grupamentos humanos deixam de ser nômades . Dividem a terra e passam a ser sedentários. Começa m a se estabelecer as aldeias, depois as cidades, depois os estados no sentido antigo do termo, e com elas as sociedades patriarcais, ou seja, os portadores de valores e da sua transmissão são os homens. 

Na Roma antiga o status de mulher foi extremamente degradado como era muito comum homossexualidade, a mulher fica restrita à reprodução. A sexualidade era rigidamente controlada pelos homens, o casamento era monogâmico e a mulher era obrigada a sair virgem da mão dos pais para as mãos do marido, qualquer ruptura desta norma poderia significar a morte, bem como assim, o adultério. A mulher fica assim reduzida ao âmbito doméstico e reprodutora. Perde qualquer capacidade de decisão no domínio público, que fica inteiramente reservado ao homem o que torna a origem da dependência econômica da mulher, e se forma no decorrer das gerações, uma submissão psicológica que dura até hoje. 

Dentre esse terror psicológico, físico e moral, a igreja teve um papel muito competente na história da submissão feminina.

Na idade média, as mulheres tinham o conhecimento transmitido de geração em geração como o de parteira, curandeiras, druídas (que mexiam com ervas) pois não existia desenvolvimento das ciências e formação acadêmica biológicas para tratamento das enfermidades. Mais tarde na em meados da idade média elas vieram a representar uma ameaça, primeiro ao poder médico, com as universidades e segundo porquê elas formavam comunidades, como eram na totalidade muito pobres umas cuidavam das outras. 

E para o resto da vida, nessa sociedade, conhecimento e prazer, emoção e inteligência são mais integrados na mulher do que no homem e por isso são perigosos e destabilizadores, em um sistema que repousa no controle inteiramente, no poder.

O fato de Eva ter sido gerada da costela de Adão nos remete a concluir que , o homem agora é quem gera a mulher, o que inferioriza o fato de parir, que antes, assegurava a grandeza. Grandeza esta agora, que ertence ao homem, que é quem trabalha e domina a natureza. Já não é mais o homem que inveja a mulher, agora é a mulher que inveja o homem e depende dele.  

A mulher é vista como tentadora do homem, aquela que pertuba a sua relação com a sua transcendência e também aquela que conflitua a sua relação com os homens. Ela é ligada à natureza, à carne, ao sexo e ao prazer, domínios que tem que ser normatizados. Coloca-se o sexo como o pecado supremo e as mulheres se tornam frígidas porque sexo é coisa do diabo.

Era ela a responsável por qualquer e todo o mal que ocorressem naquela sociedade como morte do rebanho, doenças, catástrofes climáticas (seca) até impotência sexual do homem.

A religião católica e mais tarde, a protestante contribuiu decisivamente em varrer de toda a Europa, torturando e assassinando em massas as mulheres a quem eram julgadas como bruxas. Calcula-se que a inquisição assassinou 100 mil mulheres nas fogueiras sob o pretexto, entre outros de copularem com o demônio.

E não espanta que na própria Bíblia encontremos indícios dessa desigualdade entre homens e mulheres. Quando Deus criou o homem, Adão, ele o cria só apenas e depois criou a sua companheira Lilith, do barro, da sujeira.E depois, para o consolo de Adão, Deus criou Eva um ser submisso gerada da costela de Adão, indigna e imperfeita.  

 E por isso esse mito vergonhoso, disseminador de ódio contra a mulher, com objetivo déspota de arrancar, abstrair, castrar, manipular e violar os direitos femininos. Por causa da desobediência, por não querer ficar por baixos nas relações íntimas, ter que abrir-se e servir, por não ter seus direitos, como mulher respeitados, Lilith foi estereotipada como rebelada demoníaca e foi rotulada e usada como exemplo para toda e qualquer mulher, que se opuseram às ordens patriarcais e ela tem servido para colocar as mulheres em seu devido lugar.

Por se opor a obedecer a Adão, Lilith, passa a ser rotulada de concubina do Demônio, assassina de crianças, dama das trevas e outras baboseiras transloucadas e patológicas criadas pelas paranóias arcaicas, patriarcais religiosas que vem dominando o mundo por milênios e que infelizmente ainda há resquícios desta mentalidade doentia. 

O que Lilith foi, sem dúvida, o primeiro arquétipo feminista. 

 Por causa dessa opressão feminina é que hoje a mulher liberta-se à procura do mundo público e à procura do prazer.
 

Morte de Mario Benedetti



Escritor uruguaio, autor de mais de 80 livros, deixa órfã uma legião de leitores

Eric Nepomuceno - O Estado SP

O domingo 17 de maio (2009) foi um dia de céu encapotado e rajadas de chuva e ventania em Montevidéu, que ele chamava de ‘cidade de todos os ventos’. Se tivesse olhado pelas amplas janelas de seu apartamento na Avenida 18 de Julho, Mario Benedetti constataria uma vez mais que nesta época do ano Montevidéu é um mundo de terna melancolia.


Mas ele não saiu da cama. Passou o dia todo alternando o sono sossegado com períodos de um despertar calado, distante. Pelo fim da tarde sua respiração tranqüila foi se fazendo mais suave, mais suave, até que, quando faltavam cinco para as 6, parou de vez. Assim, dormitando na penumbra e sem nenhum olhar de despedida, foi-se embora esse poeta cálido e bondoso, tímido e cordial como corresponde aos uruguaios de velha estirpe. Um homem de resistência e compromisso permanente, num tempo em que isso já não significa quase nada. Continuou sendo o militante de sempre, contra ventos e marés. “As causas nas quais creio me dão impulso, e por defendê-las durmo tranquilo. Não me sinto derrotado em minhas crenças ideológicas e vou continuar lutando por elas. Sem êxito, já sei”, dizia.

Se tivesse ficado por aqui até o dia 14 de setembro, cumpriria 89 anos. Não quis esperar. Na verdade, Mario começou a ir embora em abril de 2006, quando morreu Luz López, com quem foi casado durante 60 anos. Continuou escrevendo, mas a vida já não tinha graça. Dizia ele, nesses últimos tempos: Acontece a noite e estou sozinho/ a duras penas carrego meu próprio peso/ a morte levou o bom amor/ e já não sei para quem continuar vivendo.

Deixou desolada uma multidão de leitores, e, nos amigos, um vazio sem fim. “Que será de nós sem sua bondade inexplicável?”, escreveu Eduardo Galeano. “Mario foi, sobretudo, um homem bom”, assegura o poeta argentino Juan Gelman, outro companheiro de longas jornadas. Ao saber de sua morte, o espanhol Fran Sevilla disse: “Há dias que não deveriam amanhecer.” A lista de amigos que amargam essa dor é enorme, se espalha pelos mapas, vai de pintores a músicos, de escritores a poetas, de jovens esperançosos a velhos lutadores das causas perdidas, ou quase, nesta América Latina. Em silêncio, abrumados pela própria dor, ficam milhões de leitores em todo o mundo. De certa forma, saber dessa amplidão de gente que se deixou embalar e acalentar pela sua poesia serve de consolo aos amigos. “Mario ocupava um lugar muito maior do que ele mesmo achava”, diz um deles, o escritor português José Saramago.

Foram mais de 80 livros publicados ao longo de 63 anos. Alguns, como os romances La Tregua e Gracias por el Fuego, tiveram mais de cem edições. Escreveu contos, romances, ensaios, crítica literária e obras de teatro. Mas foi sua poesia que fez dele um dos latino-americanos mais lidos nos últimos muitos anos. Seus versos estão em camisetas, bolsas, cartões-postais, xícaras, cartazes, e foram transformados em canções cantadas por gerações. Muitos desses versos, copiados por milhares de jovens que fingiam uma autoria imaginada, venceram amores esquivos. Cada vez que alguém dizia a Mario que tinha conquistado o grande amor graças aos seus poemas roubados, ele sorria feliz.

Seu livro de estréia, La Víspera Indeleble, vendeu exatamente nove exemplares. Foi seu presente de casamento para Luz, em março de 1946. Dez anos e cinco livros mais tarde, publicou Poemas de la Oficina. E com esses ?poemas de escritório? ganhou prestígio. Não foi nenhum êxito de vendas, mesmo porque a tiragem era de 500 exemplares. Mas ele se tornou conhecido. Naquela altura, fazia parte do mítico semanário Marcha, dirigido por Carlos Quijano, e integrava a mais importante geração literária de seu país, a de 1945, ao lado da poeta Idea Villariño e de um mestre absoluto, Juan Carlos Onetti.

Filho de um farmacêutico e de uma dona de casa, foi batizado seguindo a estranha tradição italiana de nomes longuíssimos: Mario Orlando Hamlet Hardy Brenno Benedetti. Tinha 4 anos quando a família saiu de Paso de Los Toros e foi para Montevidéu viver uma infância de privações, que se estenderam adolescência afora. Trabalhou como vendedor de peças de automóvel, depois foi taquígrafo, mensageiro, contador, gerente de imobiliária, jornalista e funcionário público, entre muitas outras atividades.

Em seus contos e romances, estendeu sempre um olhar solidário e compreensivo para a pequena classe média uruguaia - a aridez da vida dos burocratas, a rotina amarga de um cotidiano de pouco horizonte e sonhos restritos. Traçou as distâncias entre esperança e realidade, e seus personagens eram gente comum, encontrados nos mergulhos na alma humana que Mario soube fazer tão bem. Com o romance La Tregua, de 1960, chegou ao grande público. O livro teve 150 edições em 24 países. Cinco anos depois, com Gracias por el Fuego, veio a consagração definitiva entre os escritores latino-americanos da segunda metade do século 20.

Sua poesia assegurou a ele a legião de leitores que desde o domingo, 17 de maio, ficaram órfãos. Foram 36 livros, sem contar antologias e compilações, de poemas em linguagem simples, espontânea, coloquial, ele que foi o poeta dos sentimentos, das emoções e das idéias, versos vivos que eram como conversas numa varanda entardecida.

Sua vida foi a de um homem de esquerda, de compromisso com seu tempo e sua gente - um compromisso que custou perseguições e ameaças, exílio, desterro, as dores das separações e das perdas. Acreditava num outro mundo possível. Foi um suave indignado, um doce iracundo. Aliou sempre o rigor da palavra escrita - “como escritor, meu primeiro compromisso é com a literatura” - com sua visão de mundo: “Como cidadão, tudo que afeta o homem me diz respeito, e se o cidadão é escritor é natural que a preocupação política apareça em sua obra”, dizia.

Galeano nos apresentou na Buenos Aires de 1973, onde eu morava e ele chegou exilado. Ao longo desses anos todos o mundo rodou e nós também, e nos encontramos em Lima e Madri, no México e em Havana, em Paris e em Manágua, e dele guardo a memória de um humor ingênuo e tímido, uma esperança tranqüila e permanente, um olhar límpido, guardo a certeza de ter sido amigo de um homem bom, generoso e solidário. O tempo e as distâncias diminuíram nosso convívio mas não nos afastaram jamais. E o que mais me dói agora é nunca ter dito a Mario quanto eu gostava dele.

Um de seus poemas dos últimos tempos pede: quando me enterrem/ por favor não se esqueçam/ da minha caneta. Na manhã da terça-feira, dia 19, Mario Benedetti foi enterrado em Montevidéu. Milhares de pessoas o acompanharam ao longo de 30 quarteirões, seu derradeiro passeio pela cidade. Nenhuma delas jamais esquecerá sua caneta, nem as palavras que escreveu.

terça-feira, 14 de julho de 2009

TABACARIA






















Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928

Quem sou eu

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Pelotas, RS, Brazil
Quem sou eu? Pois começo a pensar: como Leolo, não o sou, porque eu sonho. Parce que moi, je rêve. Je ne le suis pas. Abdico do reinado de ser para estar um rio: um poderoso rio castanho, taciturno, indômito e intratável... O aroma das uvas sobre a mesa de outono. O seu estuário onde a estrela-do-mar, o caranguejo e o espinhaço da baleia são arremessados para a pulsação da terra. Tudo tange e vibra. Fora isso, há esse tempo de agora, ex nihilo, mastigando algum pedaço de silêncio enquanto a poesia vibra. Desse mim, não há muito o que dizer, mas certamente há muito o que inventar.

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