As palavras são como vinho, é preciso beber para sabê-las. Mas, não é tão simples, é preciso antes aprender a bebê-las, degustá-las,descobrir os seus becos, seus meandros, seus aromas secretos de palavras, saber esperar a sua hora minúscula, oculta, seus caramelos congelados que esperam a chegada da primavera para transformar-se de novo em palavras pétreas e poder significar.

sábado, 24 de maio de 2008


Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado - esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,

Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;

O que agora vejo que deveria ter feito,
O que agora só claramente vejo que deveria ter sido -
Isso que é morto para além de todos os Deuses,
Isso - e foi afinal o melhor de mim - é que nem os Deuses fazem viver...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro -
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse nada ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para um outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível para mim.

(poemas de Álvaro de Campos - Heterônimo de Fernando Pessoa)

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Quem sou eu

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Pelotas, RS, Brazil
Quem sou eu? Pois começo a pensar: como Leolo, não o sou, porque eu sonho. Parce que moi, je rêve. Je ne le suis pas. Abdico do reinado de ser para estar um rio: um poderoso rio castanho, taciturno, indômito e intratável... O aroma das uvas sobre a mesa de outono. O seu estuário onde a estrela-do-mar, o caranguejo e o espinhaço da baleia são arremessados para a pulsação da terra. Tudo tange e vibra. Fora isso, há esse tempo de agora, ex nihilo, mastigando algum pedaço de silêncio enquanto a poesia vibra. Desse mim, não há muito o que dizer, mas certamente há muito o que inventar.

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