As palavras são como vinho, é preciso beber para sabê-las. Mas, não é tão simples, é preciso antes aprender a bebê-las, degustá-las,descobrir os seus becos, seus meandros, seus aromas secretos de palavras, saber esperar a sua hora minúscula, oculta, seus caramelos congelados que esperam a chegada da primavera para transformar-se de novo em palavras pétreas e poder significar.

domingo, 26 de junho de 2011

Passagem da Noite

   É noite. Sinto que é noite não porque a sombra descesse (bem me importa a face negra) mas porque dentro de mim, no fundo de mim, o grito se calou, fez-se desânimo. Sinto que nós somos noite, que palpitamos no escuro e em noite nos dissolvemos. Sinto que é noite no vento, noite nas águas, na pedra. E que adianta uma lâmpada? E que adianta uma voz? E noite no meu amigo. É noite no submarino. É noite na roça grande. É noite, não é morte, é noite de sono espesso e sem praia. Não é dor, nem paz, é noite, é perfeitamente a noite. Mas salve, olhar de alegria! E salve, dia que surge! Os corpos saltam do sono, o mundo se recompõe. Que gozo na bicicleta! Existir: seja como for. A fraterna entrega do pão. Amar: mesmo nas canções. De novo andar: as distâncias, as cores, posse das ruas. Tudo que à noite perdemos se nos confia outra vez. Obrigado, coisas fiéis! Saber que ainda há florestas, sinos, palavras; que a terra prossegue seu giro, e o tempo não murchou; não nos diluímos. Chupar o gosto do dia! Clara manhã, obrigado,

o essencial é viver!

Carlos Drummond de Andrade

em "A Rosa do Povo" (entre 1943 e 1945)

Um comentário:

  1. À Noite Dissolve os Homens

    A noite desceu. Que noite!
    Já não enxergo meus irmãos.
    E nem tão pouco os rumores que outrora me perturbavam.

    A noite desceu. Nas casas, nas ruas onde se combate,
    nos campos desfalecidos, a noite espalhou o medo e a total incompreensão.
    A noite caiu. Tremenda, sem esperança...
    Os suspiros acusam a presença negra que paralisa os guerreiros.

    E o amor não abre caminho na noite.
    A noite é mortal, completa, sem reticências,
    a noite dissolve os homens, diz que é inútil sofrer,
    a noite dissolve as pátrias, apagou os almirantes cintilantes!
    nas suas fardas.

    A noite anoiteceu tudo... O mundo não tem remédio...
    Os suicidas tinham razão.

    Aurora, entretanto eu te diviso,
    ainda tímida, inexperiente das luzes que vais ascender
    e dos bens que repartirás com todos os homens.

    Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
    adivinho-te que sobes,
    vapor róseo, expulsando a treva noturna.

    O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
    teus dedos frios, que ainda se não modelaram mas que avançam
    na escuridão
    como um sinal verde e peremptório.

    Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
    minha carne estremece na certeza de tua vinda.

    O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes
    se enlaçam,
    os corpos hirtos adquirem uma fluidez, uma inocência, um perdão
    simples e macio...

    Havemos de amanhecer.
    O mundo se tinge com as tintas da antemanhã
    e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
    para colorir tuas pálidas faces, aurora.

    Carlos Drummond de Andrade

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Quem sou eu

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Pelotas, RS, Brazil
Quem sou eu? Pois começo a pensar: como Leolo, não o sou, porque eu sonho. Parce que moi, je rêve. Je ne le suis pas. Abdico do reinado de ser para estar um rio: um poderoso rio castanho, taciturno, indômito e intratável... O aroma das uvas sobre a mesa de outono. O seu estuário onde a estrela-do-mar, o caranguejo e o espinhaço da baleia são arremessados para a pulsação da terra. Tudo tange e vibra. Fora isso, há esse tempo de agora, ex nihilo, mastigando algum pedaço de silêncio enquanto a poesia vibra. Desse mim, não há muito o que dizer, mas certamente há muito o que inventar.

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